Tuesday, May 25, 2010

Para além do crack


25 de maio de 2010 | N° 16346
 








ARTIGOS: saiu na ZH de hoje

Para além do crack, por Aloyzio Achutti*

O crack e outras substâncias capazes de causar dependência, como tabaco, cocaína, álcool e certos medicamentos, agem sobre o cérebro, mexendo com um sistema chamado de recompensa, resultando em sensação de prazer. Outros gatilhos, além da exposição a substâncias químicas de origem externa, podem desencadear internamente os mesmos fenômenos: sexo, alimentação e diversos tipos de estresse, como jogo, exercício físico, situações de perigo e violência.

Assim como a dor nos afugenta, o prazer nos leva à repetição; e a experiência também rapidamente nos ensina que para aliviar qualquer dor alguma compensação pode ser obtida usando o mesmo mecanismo de recompensa.

Em condições naturais, estes processos exigem contemporização e são relativamente mais lentos do que quando artificialmente provocados, prevenindo excessos e frustrações. Eles dependem de mediadores químicos orgânicos rapidamente esgotáveis e mecanismos de controle que exigem estímulos progressivamente mais intensos para funcionar. Seguindo este círculo vicioso, chega-se à dependência e ao comportamento patológico.

Nós, humanos, somos interdependentes. No início, e por um tempo prolongado, dependentes da mãe, até começarmos a ter consciência de nossa identidade.

A necessidade de sermos reconhecidos e de fazer parte de um grupo no qual encontramos proteção e segurança é provavelmente um arquétipo relacionado com esta relação filial, e nos acompanha por toda a vida.

A marginalização da cidadania, a percepção do não reconhecimento, a perda de laços afetivos e o abandono são circunstâncias traumáticas e nos causam dor e sofrimento, assim como a fome, qualquer doença ou ferimento. Características de nossa vida em sociedade explicam a origem de tanto uso indevido do sistema de recompensa, e não é suficiente sua repressão.

A medicina já teve desilusões semelhantes: quando surgiram os antibióticos, pensou-se que o problema das infecções estava superado. Logo se tornou evidente que não bastava dispor de uma arma para eliminar germes. Certas doenças somente atacam organismos debilitados, e de sua integridade depende o controle final.

Mesmo sabendo serem as informações acima relembradas bastante conhecidas, proponho que as utilizemos para ampliar nossa perspectiva e nossos objetivos de ação, não nos fixando apenas num jogo entre viciados, traficantes, industriais e comerciantes inescrupulosos e bandidos, mas como termômetro para medir e monitorar nosso mal-estar social.

O vício e o desvio do comportamento são expedientes alternativos que têm origem na dor da falta de identidade, de oportunidades de expressão, de perspectiva e objetivo na vida, e na impossibilidade de reconstruir laços afetivos. A repressão isolada marginaliza ainda mais, e reforça a opção equivocada que está ao alcance de cada um dentro do próprio organismo. Parte importante da solução é certamente política, e está localizada bem além dos problemas que à primeira vista se nos apresentam.
*MÉDICO

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