Sunday, January 16, 2011

Medicina e Felicidade

Apontado pela AMICOR Maria Inês Reinert Azambuja
TENDÊNCIAS/DEBATES 

Medicina e felicidade 

MIGUEL SROUGI


Os momentos de felicidade não se perenizam, porque a profissão é frequentemente açodada pelos efeitos de uma sociedade injusta e desigual

A medicina nos oferece um privilégio sem paralelo na existência humana: a chance de aliviar o sofrimento e de resgatar seres para a vida. A sensação proporcionada por esses momentos é arrebatadora. 
E isso acontece no cotidiano da vida médica. Esse processo se insere no conceito de felicidade plena, cuja melhor definição roubei da telinha despretensiosa de meu computador. Li e concordei que felicidade é um estado de contentamento com o que somos, é viver num "continuum" de bem-estar físico, mental e afetivo. Nada material. 
Contudo, a vida me ensinou que, para atingir esse estado de graça, mesmo usufruindo de todo o bem-estar, precisamos estar cercados por pessoas felizes. O médico, como ninguém, tem a oportunidade de criar a felicidade no seu entorno. 
Por essa razão, para pacificar a alma, os médicos não necessitam apenas da ilustração para curar, mas têm que ser dotados de solidariedade e de compaixão, têm que se postar em defesa dos seus pacientes e proteger o seu entorno, como guardiães do corpo e da alma.
Infelizmente, os momentos de felicidade não se perenizam, porque a profissão médica é frequentemente açodada por imperfeições da natureza humana e pelos efeitos de uma sociedade injusta e desigual. 
Profissão que exige o comprometimento pessoal permanente, a separação da família e a convivência com o sofrimento. 
Profissão que, às vezes, se acompanha de incompreensões indevidas da sociedade, que nem sempre reconhece as limitações da medicina ou a existência de fatos inexoráveis que envolvem a existência humana, como a morte implacável, a decadência física pelo passar dos anos ou doenças sem cura. 
Profissão em que seus principais protagonistas, os médicos, são asfixiados por um sistema de saúde pública indigente, perdulário e injusto, gerido por um governo central insensível, que foi capaz de pagar, em 2010, cerca de R$ 180 bilhões da riqueza nacional em juros e destinar só R$ 55 bilhões para financiar toda a saúde do povo brasileiro. 
Governantes incapazes de compreender que sem saúde não existem seres livres. Profissão em que seus membros são acuados pela violência e afrontados por salários incapazes de propiciar vida digna, oprimidos por entidades privadas de assistência, que cerceiam sua autonomia e impõem restrições perigosas às ações médicas. Enfim, profissão que sobrevive pelos seus encantos incontestáveis, mas também porque é conduzida por seres que têm no estoicismo uma de suas marcas incomparáveis. 
Como atenuar esses aspectos menos inebriantes da profissão? 
Não tenho dúvidas: expondo honestamente as limitações da medicina e dos seus profissionais, frágeis como os outros seres. Mais do que isso, denunciando o apequenamento daqueles que nos dirigem, com a dignidade que a posição de médico nos confere. 
Sem a vergonha de protestar, de espernear, usando o mesmo idealismo que todos exibiam quando ingressaram na universidade. Fazendo brotar na sociedade a consciência crítica e os sentimentos da cidadania e da indignação. 
Os médicos devem ser modelos de comportamento, devem aprofundar as relações humanas e devem exercer a medicina na sua dimensão mais sublime. Mas também devem reagir, demonstrar indignação, impregnar os que vêm depois com os sentimentos da consciência crítica e da cidadania. 
Os médicos devem se postar firmemente em defesa dos direitos humanos e contra as indecências, lembrando o arcebispo Desmond Tutu: "Se ficarmos neutros numa situação de injustiça, teremos escolhido o lado do opressor". 


MIGUEL SROUGI, 64, médico, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical School (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Conselho do Instituto Criança é Vida.

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