Sunday, November 27, 2016

Troféu AMRIGS 1990

Jornal AMRIGS   XXXVII – abril-maio 1990 – pag. 9                                                                                           
TROFÉU AMRIGS
JAMRIGS: 0 que motivou a sua escolha pela medicina como ramo profissional?
ACHUTTI: Bom, eu tinha dois tios médicos, e a gente sempre tem a figura de um médico que nos cuida, pelo menos eu tinha uma boa imagem de médico. Além disto meu pai era farmacêutico e no interior o farmacêuti­co é um pouco médico.
Mas na realidade, durante o curso científico, minha intenção não era ser médico. Eu estava me preparando para ser engenheiro. Aí eu encontrei minha mulher, a dra. Valderês, e acho que ela motivou minha opção, já que queria fazer medicina.
JAMRIGS: Quantos anos o senhor está casado com a dra. Valderês?
ACHUTTI: Trinta e três anos. Casei durante o curso. Quando me formei minha esposa estava grávida do nosso primeiro filho. Este filho é fotógrafo e minha segunda filha é nossa colega, formada há dois anos.
JAMRIGS: No passado o sr. recebeu o Troféu AMRIGS por serviços prestados à comunidade. O prêmio não é nada mais do que reconhecimento de um trabalho em favor da saúde da população. Como um cardiologista caminhou para este campo tão heterogêneo, que é o da saúde pública?

            Seguindo a proposta de apresentar o trabalho e o pensamento dos ganhadores do Troféu AMRIGS/89, entrevistamos nesta edição o dr. Aloyzio Achutti, destacado com o prêmio na categoria "Serviços Prestados à Comunidade.
Formado em 1958 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o dr. Achutti' trabalha movido pela paixão à saúde pública. Sua primeira preocupação foi com o tipo de assistência que o Estado prestava, e o tipo de uso que este mesmo Estado fazia com o trabalho médico. De atividade localizada, suas experiências foram se ampliando por toda América Latina, com respaldo da Organização Mundial de Saúde - OMS. Hoje sua preocupação é com o estudante de medicina.
Uma prova de que o antigo desejo de ser engenheiro não o abandonou, sua teoria é de que se torna necessário a criação de pontes entre as várias facetas e peculiaridades da medicina.

ACHUTTI: Eu tenho impressão que o que me marcou, que me motiva e me leva — e que pode ter sido motivação para ser distinguido com o prêmio não é provavelmente a atividade clínica.
Num determinado momento essa ativi­dade clínica não me satisfez mais. Eu comecei a ter algumas inquietações, sobre o porquê das doenças, porquê da saúde. Cada caso que a gente encontra é como se tivéssemos uma história muito curta, tanto no tempo quanto no espaço, de uma pessoa. Ela começa a sentir dor no peito, mas na realidade isto é um ponto dentro de um processo realmente mais longo no tempo. E se nós ficarmos, como médicos, só restritos a essa parte da história, é muito pouco. Pode satisfazer por algum tempo, mas logo a gente começa a perguntar se por trás disto aí, tem alguma coisa mais errada.
JAMRIGS: Quando esta inquietação não acontece, o que falhou?
ACHUTTI: Formalmente o curso médico não está tão preocupado em contar o que está atrás da história. O médico está muito voltado para a coisa imediata, tapar o buraco. Na realidade isto precisa ser mudado e tem muita gente no mundo fazendo esforço para a mudança. E não é só perceber o que está atrás da história, mas os “n” elementos encadeados. Eu pego o sujeito com angina, por exemplo. Ele fuma. Fuma porque estava buscando saída para uma depressão crônica; porque veio de uma civilização urbana industrial, que o reprime sem perspecti­va futura, com toda uma situação econômica difícil. Tudo tem uma fenomenologia social.         
Então é mais ou menos por aí. É tentando ver para além do fenômeno aparentemente isolado que surgem as minhas inquietações. O curso médico me preparou para este fenômeno de curta duração, mas isto não chega.
JAMRIGS: O conceito de saúde é ainda muito distorcido, muito centrado na figura do médico no consultório, curando um mal imediato, não é mesmo?
ACHUTTI: É uma coisinha curtinha. Resolve um problema imediato e nem deve se interessar pelo resto, senão ele vai começar a fazer muitas perguntas, vai começar a incomodar.
Mas posso dizer que dois fatores aguçaram mais minhas inquietações. Durante uma época eu trabalhei com cardiopatias congênitas, que se vamos olhar parece mais alienante ainda, é uma superespecialização. Era o ano de 1970 e eu trabalhava na Secretaria de Saúde do Estado, no Instituto de Cardiologia. A partir daí surgiu a oportunidade e trabalhar dentro da área de cardiologia, em uma base populacional envolvendo saúde pública. Eu queria sair do Serviço Público Estadual, porque ia assumir como professor na PUCRS. Quem liberava era o Secretário da Saúde Jair Soares pessoalmente, e eu fui dizer à ele que queria licença para tratar de interesses. Ele argumentou com os meus 17 anos de serviço público, e eu argumentei que estava apenas fazendo assistência sem perspectiva de saúde pública, o que continuaria fazendo no meu novo serviço universitário. Ele então me colocou contra a parede, sugerindo que eu propusesse como eu achava que deveria ser. Comecei então a pensar em algo dentro da minha área. Na Europa estavam desenvolvendo um pro­grama de prevenção da Febre Reumática, que é mais comum em países pobres e em desenvolvimento. Era uma proposta da OMS para países como Sudão, Egito, Turquia e Grécia, com padrões iguais ou piores que os nossos, e se eles podiam fazer, porque não aqui? Traba­lhei nesta linha, até para sensibilizar o pessoal do Planejamento da Secretaria da Saúde - na época o Arco Verde, Sclyar, Tigre, Ossanai, Fischmann, e outros - uma turma, que estava fazendo a saúde pública desabro­char. Havia um escritório da Organização Pan-americana de Saúde e Porto Alegre, e eu pedi autorização para utilizar um protocolo da OMS, após expor meu projeto. Autorizaram e comecei a trabalhar. Em 74 veio a Porto Alegre o diretor do setor de Doenças Cardiovasculares da OMS, para falar comigo, o que foi uma surpresa, pois fiquei sabendo que nosso programa era o único no mundo com base governamental. Os outros eram todos baseados em serviços privados. De uma hora para outra a coisa ficou importante e evoluiu a ponto de sermos consultados pelo Ministério da Saúde se poderíamos abrigar reuniões dos países latino-americanos que que­riam fazer um projeto para Prevenção da Febre Reumática, já que éramos os únicos que tinham a coisa regulamentada e andan­do. A reunião aconteceu em 1975 e eu coordenei, com a participação de oito países lati­no-americanos
JAMRIGS: E agora na UFRGS mais um desafio...
ACHUTTI: Isso está me dando muita satisfação. Na realidade a turma que recém ingressa, em todas as universidades, tem uma riqueza que os torna capazes de enxergar além do horizonte imediato. O currículo infelizmente os desvia desse caminho, porque a formação médica é a deforma­ção da realidade humana. Esse médico durão, tecnicista é uma deformação. Os meus alunos estão agora trabalhando com velhinhos nos asilos, e no mês passado, de 70 alunos, tranquilamente 60 tiveram uma resposta extraordinária em termos de escrever, descrever situações, de fazer coisas que eles perdem durante o curso.
A disciplina que eu tenho na UFRGS era a antiga “Acompanhamen­tos de Família” e que rebatizamos de “Promoção e Proteção à Saúde”, e acho que é uma coisa muito boa, porque a gente tem que simplificar para estudar, mas depois temos que “complicar” tudo de novo para poder ver o fato em todas as suas dimensões. Aqui na própria AM RIGS, onde já trabalhei bastante, o espírito é o de especialidades querendo mostrar a coisa dentro de uma superespecialização e de um fenômeno isolado, não fazendo as pontes buscando uma explicação no conjunto.
JAMRIGS - Estabelecer as pontes é a sua proposta...
ACHUTTI: O médico pode ter a atitude, uma presença, como operário. Não como se desejaria que o operário fosse, mas o da estória do apertador de parafusos do Chaplin. Ele faz e não se importa com o todo, e até há interesse que ele não tenha noção de conjunto, porque aí não poderá mudar as coisas. Só tem que fazer, fazer, indefinidamen­te fazer o mesmo. Não questiona, não muda nada. Nós médicos somos treinados para fazer coisas que não mudem nada. Eu tenho procurado trabalhar minhas inquieta­ções, e acho que estabelecer pontes é de fundamental importância.

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