Sunday, December 18, 2016

Contribuições à Cardiologia (texto de 2003)

Depoimento de Aloyzio Cechella Achutti sobre momentos da cardiologia universal, particularmente na prevenção e na dimensão populacional.
 (Texto de 2003 sob título solicitado pelo Dr. Ely Toscano Barbosa, lider e ex-presidente da SBC)
            O enorme desenvolvimento que teve a Cardiologia na segunda metade do século XX, foi certamente um motivo de emulação para a busca de uma participação na grande arena universal da especialidade.
            Ao final da década de 50, enquanto se intensificava o intercâmbio internacional e estagiavam colegas em serviços de renome, como o do Instituto de Cardiologia do México e no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos da América (NIH), eu estava imerso na segunda residência médica implantada no Brasil, em convênio da Kellogg Foundation com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Serviço do Professor Eduardo Faraco, na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Desde a graduação freqüentava o Ambulatório Cárdio-Pulmonar da Enfermaria 38, com ênfase para o atendimento de Febre Reumática (destaque deve ser feito à figura do dr. Adão do Valle Mattos) e de Cardiopatias Congênitas, evoluindo no início da década de 60 para porta de entrada dos Serviços de Hemodinâmica (destaque ao dr. Flávio Maciel de Freitas) e de Cirurgia Cardíaca (destaque ao dr. Cid Nogueira).
         Embora trabalhando com alta tecnologia e na reabilitação cardiovascular, a prevenção, e a saúde pública, exerciam grande atração como espaços ainda vazios no cenário cardiológico em nosso país e incipiente no resto do mundo. Em nosso meio o Professor Ruy Laurenti havia participado de um estudo da Organização Panamericana da Saúde (OPAS) sobre mortalidade urbana de 1962-64 (mais detalhes específicos nesta mesma publicação).
            Nesta direção, abriu-se um caminho um tanto diferente do costumeiro, no acesso a cardiologia internacional. Projetos na área da Saúde Pública interessaram a OPAS e posteriormente a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Banco Mundial (WB), propiciando também o encontro com a Sociedade Internacional e Federação de Cardiologia (ISFC) com sede em Genebra e, no caminho de volta, com a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), uma de suas sociedades filiadas.
            Em 1964 houve nos EEUU uma Conferência Nacional sobre Saúde Cardiovascular, da qual um dos organizadores foi o Prof. Jeremiah Stamler, cujos anais foram de grande valia na descoberta dos caminhos futuros, particularmente nos aspectos preventivos recém iniciados. Em 1972, a Assembléia Mundial da Saúde, pela primeira vez adotou uma resolução (WHA25.44) apontando para a necessidade da  prevenção das doenças cardiovasculares em países em desenvolvimento pois, a par dos problemas peculiares da pobreza (desnutrição e doenças infecto-contagiosas) sofriam também de doenças crônico-degenerativas anteriormente julgadas como restritas aos países industrializados. Em conseqüência a OMS começou a atuar na área cardiovascular com países em desenvolvimento através de um projeto de prevenção da Febre Reumática coordenado pelo Dr. Thomas Strasser. Se tal projeto era adequado para países como Turquia, Egito, Albânia, Marrocos, e outros do Mediterrâneo, provavelmente também seria adequado para o caso do Brasil.
Foi assim que propus à Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul a adoção de um programa semelhante, simultaneamente fazendo contato com o escritório local da OPAS visando autorização para utilizar o mesmo protocolo. Na ocasião, ainda não havia sido divulgada a resolução da Assembléia Mundial da Saúde sobre os países em desenvolvimento, nem se conheciam os planos da OPAS de iniciar pela Prevenção da Febre Reumática.
Foi uma surpresa, pouco tempo depois, o pedido do Dr. Jorge Litvak, recém assumindo o setor de Doenças Crônico-degenerativas na OPAS, para realizar em Porto Alegre um primeiro encontro internacional sobre Prevenção da Febre Reumática na Comunidade. A seguir nos visitaram o Professor Rubens Maciel (na ocasião trabalhando na OPAS) e Dr. Zbinek Pisa,diretor do setor de Doenças Cardiovasculares da OMS, para examinar o que estávamos fazendo em nosso Estado.
Daí por diante foi uma seqüência de intercâmbio gratificante e valiosas experiências internacionais, possibilitando o desenvolvimento de conceitos e modelos de prevenção de doenças cardiovasculares, e promoção da saúde, em diversos países, inclusive no Brasil, onde a experiência do exterior acelerou o reconhecimento interno oficial da proposta e sua expansão.
Sumariamente:

1.   Programa Inter-Países (Brasil, Chile, Perú, Bolívia, Equador, Venezuela e Guatemala) de Prevenção Secundária da Febre Reumática na Comunidade;
2.      Reuniões técnicas sobre prevenção da Febre Reumática e de outras doenças cardiovasculares, em quase todos os países Latino-Americanos;
3.      Implantação de programa semelhante em países do Sudeste Asiático (reunião em Delhi, 1979);
4.      Elaboração de Publicação Científica  OPAS: Prevención y Control de la Fiebre Reumática em la Comunidad. Manual de normas operativas para um programa de extensión de la cobertura em los diferentes niveles de atención. Washington, DC, 1980. Posteriormente traduzido para o inglês, republicado em 1985, e adotado também pela OMS, como WHO/CVD/83.4. Genebra.
5.     Criação em 1982 (Porto Rico) de um Comité Ad-hoc de Prevenção da Febre Reumática na ISFC em colaboração com a OMS. O primeiro presidente foi Dr. Edward Kaplan (USA), ao qual sucedi em 1989;
6.       Elaboração de Informe Técnico sobre Hipetensão Arterial na Comunidade junto à OPAS: La Hipertensión Arterial como problema de salud comunitário. Manual de normas operativas para un programa de control en los diferentes niveles de atención. Série Paltex. Washingotn, 1982.
7.      Membro desde 1982, durante quase 20 anos do painel de especialistas da OMS sobre Fumo ou Saúde;
8.       Elaboração de um Informe Técnico WHO: Smoking Control Strategies in Developing Countries. Technical Reports Series No. 695Geneve, 1983.
9.      Em três ocasiões (1986, 1988 e 1990) convocado como membro do Comitê Diretor para Doenças Cardiovasculares da Organização Mundial da Saúde, junto a representantes de todas as regiões do mundo, para avaliação das atividades desenvolvidas e elaboração da política para apresentação às Assembléias Mundiais da Saúde;
10.  Publicação no Heartbeat (jornal da ISFC) e reproduzido depois no Newsletter da Sociedade de Cardiologia da Austrália, de um documento redigido para uma das reuniões do Comitê Diretor para DCV da OMS A Achutti: “Some considerations about public health approaches to cardiovascular diseases- with particular emphasis on their application to the socially less privileged”. HeartBeat  (10-11) 1, March 1987. Geneva.
11.  Desenvolvimento do Projeto MORE na OPAS para monitorização de fatores de risco em países da região;
12.  Membro de grupos de trabalho da OPAS na elaboração de conceitos sobre prevenção de doenças e promoção da saúde e sua aplicação aos serviços de saúde, sob coordenação do Dr. Luiz Ruiz (US), publicado na Revista de Educação Médica da OPAS;
13.  Membro da Força Tarefa do Convênio da ISFC-UNESCO-WHO, sob liderança do Dr. Antônio Bayés de Luna (Barcelona) para prevenção da Febre Reumática, com elaboração de material instrucional publicado em 1992 e traduzido para 9 línguas;
14.  Pesquisa (1989) sobre fatores de risco em 8 cidades da América Latina, entre as quais Porto Alegre (pesquisador principal junto com Dr. Bruce Duncan, Coordenador do trabalho de campo) e São Paulo. Da base de dados foram elaboradas várias teses de mestrado e doutorado.
15.  Publicações do Banco Mundial: Briscoe, John:“Brazil: The new Challenge of Adult Health. (A World Bank country study) ISBN 0-8213-1636-2. Washington, 1990.
16.  Editor Senior do US-DHHS: “1992-Report of the Surgeon General: Smoking in the Americas”.Publication No. (CDC) 92-8419. Atlanta, Georgia. USA,1992. Seguindo-se de outro relatório discriminado por países publicado em colaboração com a OPAS: Tobacco or Health: Status in the Américas. A report of the Pan American Health Organization. Scientific Publication No. 536.Washington, 1992.
17.  Representante da ISFC na reunião inter-institucional sob patrocínio do Institue of Medicine (IOM-Academia de Medicina dos EEUU) em colaboração com a OMS e o Banco Mundial, em Washington 1992. A partir deste encontro se iniciou um projeto amplo de pesquisa e prevenção das Doenças Cardiovasculares em países não industrializados ou em vias de industrialização que deu origem ao World Heart Forum, organização inter-institucional ligando WHF, WB, WHO, CDC, NIH e IOF.;
18.  Colaboração com o WB:“World Development Report-1993: Investing on Health, Washington, 1993.”
19.  Simpósio em Genebra em 1994, OMS/ISFC, para analisar os 40 anos de Prevenção Secundária e revisar as bases científicas da Prevenção Primária da Febre Reumática;
20.  Membro durante mais de dez anos (1989 a 1992) do Scientific Board da ISFC, agora Federação Mundial de Cadiologia (WHF) e criador do “Council on Prevention of Rheumatic Fever and Rheumatic  Heart Disease” e seu primeiro presidente;
21.  Membro do Conselho de Epidemiologia e Prevenção da ISFC, tendo participado de dois Seminários Internacionais Avançados de 10 dias sobre Epidemiologia e Prevenção (na Irlanda e na Bélgica);
22.  Participação em todas as Conferências de Cardiologia Preventiva, desde a primeira realizada em Moscou em 1985. Envolvido atualmente na preparação científica da 6ª Conferência que deverá se realizar em 2005, sob a presidência do Dr. Mário Maranhão, em Foz do Iguaçu, pela primeira vez no hemisfério sul;
23.  Co-autor do livro branco da Federação Mundial de Cardiologia “Impending Global Pandemic of Cardiovascular Diseases. Challenges and oportunities for the prevention and control of cardiovascular diseases in developing countries and economies in transition.” Prous Science. Barcelona 1999;
24.  Participante na elaboração e negociações sobre um projeto de Prevenção da Febre Reumática, integrado em projeto mais amplo, que seria aplicado em Bangladesh, com suporte econômico da Comunidade Européia, mas que terminou sendo obstruído por motivos políticos.
25.  Em julho de 1997, dois meses depois de ter se dado início à lista AMICOR na INTERNET, o Professor Bernard Lown (Boston) lançou o ProCOR, ligado ao sua iniciativa SATELIFE. Convidado para seu comitê diretor, criaram-se iniciativas semelhantes em outros países, que receberam também o rótulo de AmiCOR. Assim, além da nossa lista AMICOR, existem hoje AmiCOR Argentina, AmiCOR Guatemala, AmiCOR India, AmiCOR Líbano e Amicor Paquistão.
26.  Em 1999 participação no processo de atualização do Informe Técnico sobre Prevenção da Febre Reumática a ser publicado na Série de Informes Técnicos da OMS (WHO/EDM/PAR/99.1)
27.  Duas pessoas chave devem ser destacadas neste contexto internacional: Marianne Burle de Figueiredo (Secretária Executiva da ISFC, Genebra; viúva de um Brasileiro) desde o início da década de 80, com sua eficiência e atenção, facilitou a comunicação e abriu caminhos. Mário Maranhão eleito presidente da WHF no fim da década de 90, consolidou-a como instituição de cobertura mundial, facilitou o diálogo das sociedades de países ricos com o resto do mundo, dando oportunidade à ampla participação.

Simultaneamente e, provavelmente também motivado pelas atividades desenvolvidas no exterior, foi possível participar do desenvolvimento de projetos preventivos e epidemiológicos no âmbito de nosso próprio país; alguns deles com repercussão externa:

1.          Reunião do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro em 1977, (Dr. Torloni no setor de doenças não transmissíveis)  coordenada pelo Professo Rubens Maciel, para  planificar programas de prevenção de Doenças Cardiovasculares em nível nacional;
2.     Pesquisa epidemiológica sobre pressão arterial e outros fatores de risco, em amostra representativa de toda a população adulta do Estado do Rio Grande do Sul em 1978, como Co-coordenador, junto com o Professor Eduardo de Azeredo Costa, cujo depoimento segue com mais detalhes nesta mesma publicação. Esta foi a primeira pesquisa com base populacional deste porte no hemisfério sul, e deu origem a várias teses, apresentações em congressos nacionais e internacionais;
3.      Publicações de resultados desta pesquisa na revista da OPAS e no Journal of Human Hypertension. Esta últma em colaboração com o Professor Geoffrey Rose, um dos últimos artigos com sua assinatura;
4.      Criação, junto com Dra. Rachel Snitckowsky do Departamento de Cardiologia Pediátrica da SBC, dentro do qual se desenvolveu um projeto nacional de prevenção da Febre Reumática;
5.      Programa de Prevenção da Hipertensão Arterial e de controle do Tabagismo na Secretaria da Saúde e do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul a partir de 1976 e o desenvolvimento do Projeto Fumo, de 1980 a 1984 no Estado do Rio Grande do Sul, pesquisa e intervenção em ambiente escolar, que recebeu o primeiro prêmio de Saúde Pública da AMB;
6.      Extensão da cobertura preventiva para outras doenças crônico-degenerativas e desenvolvimento da Promoção da Saúde;
7.          Ampla colaboração com o desdobramento de atividades preventivas com interesse na área cardiovascular desenvolvidas pelo Ministério da Saúde, particularmente sob a direção dos Drs Geniberto de Paiva Campos, Romero Bezerra Barbosa e Ely Toscano Babosa e, no Instituto Nacional do Câncer com Dra. Luiza da Costa e Silva;
8.       Realização em 1997, na cidade de Gramado (RS) do Primeiro Seminário Nacional de dez dias sobre Epidemiologia e Prevenção das Doenças Cardiovasculares (patrocínio Faculdade de Medicina da UFRGS, Secretaria da Saúde e do Meio Ambiente do RS, Ministério da Saúde e CNPq) sob a coordenação do Dr. Bruce Duncan e minha, com participantes de mais de dez Estados do Brasil, e onde se elaborou a Declaração de Gramado.
9.      Criação da lista AMICOR, formada inicialmente por 23 participantes, teve início em 17 de maio de 1997, logo após o Seminário de Gramado. Hoje conta com mais de 200 membros e comunicação quase diária.
10.   Professor Titular do Departamento de Medicina Interna da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, de 1973 a 1987. Disciplina de Cardiologia e Dirigente do Serviço correspondente.
11.    Criação da Disciplina de Promoção e Proteção da Saúde III (com ênfase no adulto, incluíndo o idoso) - MED 114, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e seu regente, de 1987 a 1995.
12.    Cardiologista da Equipe de Cirurgia Cardiovascular na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (Faculdade de Medicina da UFRGS) de 1961 a 1965.
13.    Criação do Serviço de Cardiologia Pediátrica no Instituto de Cardiologia do Estado do Rio Grande do Sul (em 1968 ?), e do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio    

Cada uma destas participações em momentos felizes da cardiologia, num retrospecto dos últimos 50 anos, só foi possível devido a uma ampla e entusiástica parceria, porque oportunidades foram dadas para criar e trabalhar sem restrições, com a colaboração de muitos colegas cuja enumeração não caberia nos limites deste texto. Dos citados muitos ocupavam posições institucionais chave e se engajaram em vez de criar obstáculos para o desenvolvimento de idéias que originalmente não eram suas.
Este período também coincidiu com momentos críticos no desenvolvimento da cardiologia, particularmente em sua dimensão populacional, deixando nichos vazios e que necessitavam ser preenchidos.
Foram também sem dúvida importantes as chances institucionais, abrindo caminhos inicialmente pouco trilhados por especialistas: na Secretaria da Saúde de meu Estado, na OPAS, na OMS e no Banco Mundial.
A disponibilidade da comunicação eletrônica desde a década de 80 facilitou em muito a atualização permanente, a comunicação e conectividade de todos que tem valores e interesses comuns.

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