Aloyzio Achutti
Hoje o Ministério da Saúde já conta com um setor relacionado com Prevenção e Controle de Doenças Cardiovasculares, entretanto, cabe à Sociedade Brasileira de Cardiologia como entidade que congrega os especialistas da área no país, contribuir para o desenvolvimento de uma política de saúde que cada vez mais corresponda às necessidades de nossa população. O papel da SBC não se restringe à busca da excelência no atendimento individual, mas também em contribuir para a vigilância epidemiológica, e no desenvolvimento de estratégias populacionais, principalmente no que tange à prevenção das doenças e na promoção da saúde. Ao atender a solicitação da Presidente do GEECAB da SBC, Dra. Gláucia de Oliveira, para sugerir potenciais linhas de ação sobre saúde pública relacionadas com saúde cardiovascular, lembrei-me de revisitar a Declaração de Gramado, fruto de um seminário de 10 dias no qual 52 profissionais da saúde elaboraram o documento como produto final dos estudos e discussões realizadas.Mais de dez anos se passaram, mas os valores permanecem, e é possível que as necessidades ainda subsistam. Com este intuito após revisão comentada do texto, tentarei delinear algumas sugestões que parecem factíveis e prioritárias.
Sobre Saúde e Prevenção das Doenças Cardiovasculares. 1 a 10 de maio de 1997.Sob os auspícios da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade e Federação Internacional de Cardiologia, Ministério da Saúde do Brasil, da Secretaria da Saúde e do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul e com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), reuniram-se durante dez dias na cidade de Gramado 52 profissionais da saúde no Primeiro Seminário Brasileiro de Epidemiologia Cardiovascular.
Cenários para Promoção da SaúdeA função vital do sistema cardiovascular, e a magnitude populacional de seus problemas, fazem-no um indicador natural da qualidade de vida e saúde da população, motivo pelo qual os conteúdos estudados foram discutidos e editados em documento sob a perspectiva de quatro cenários populacionais (nacional, estadual, municipal e de pequena comunidade), cuja súmula e recomendações básicas constam desta “Declaração de Gramado”.A revisão dos conhecimentos científicos atuais e das técnicas disponíveis para a prevenção das doenças cardiovasculares e sua assistência, demonstra o quanto ainda se pode fazer em nosso país: desde a melhoria das condições gerais de nutrição e cuidados durante a gestação e dos primeiros anos de vida (determinantes para o resto da vida), passando pela informação e educação das comunidades para que se habilitem a controlar os determinantes de saúde e doença, até o acesso à assistência básica e especializada.
A importância fisiológica do sistema cardiovascular evidente na prática clínica individual continua e se reforça quando o objeto passa a ser a população, o que faz de sua vigilância um valioso instrumento de avaliação da qualidade de vida e saúde global.
A Importância das Doenças Cardiovasculares e de seus Fatores de RiscoAs Doenças Cardiovasculares são o principal grupo de causas de morte em todo o mundo e também no Brasil. Embora presente em proporção menor em países com características de desenvolvimento semelhantes às nossas, tem sua importância agravada pela precocidade com que se manifestam, particularmente nos grupos socialmente menos favorecidos, devido a pior qualidade de vida e menor acesso aos serviços de saúde.Indicadores sobre fatores de risco (sedentarismo, obesidade, tabagismo, hipertensão arterial, distúrbios metabólicos, uso inadequado de álcool, e presumivelmente também estresse), e nas chances de adoecer, de ter acesso aos serviços de saúde, de manter um tratamento continuado, reabilitar-se e morrer, situam-nos em posição bastante desfavorável comparativamente a outros países. Explicações para estes diferencias entre países, ou internamente entre grupos distintos, são facilmente encontradas nas condições de pobreza, ignorância, desemprego/sub-emprego e marginalização social de importantes contingentes de nossa população, bem como em características culturais, e em especial na adoção de novos hábitos e estilos de vida. Tudo isso agravado pela falta de atenção do setor de saúde pública, e da sociedade em geral, às potenciais estratégias para a prevenção destas doenças.
Esta importância impõe a necessidade e revela a oportunidade de uma política não só específica para problemas de saúde, mas voltada para seus reais determinantes, evidentes quando se comparam grupos sociais distintos e desiguais do ponto de vista sócio-econômico e cultural.
Abordagens de PrevençãoPara melhorar a saúde não é suficiente a qualificação dos especialistas para atender pessoas com a doença avançada. Ênfase deve ser dada em estratégias populacionais na eliminação e prevenção dos fatores de risco e do ponto de vista individual na prevenção primária de alto risco e especialmente na prevenção secundária.A promoção da atividade física sistemática e de uma alimentação natural (com menos gordura e maior proporção de frutas e verduras) são exemplos de alvos de intervenção a partir dos quais pode se alcançar progressivamente o controle de outros fatores de risco. A definição de prioridades, entretanto, deve ser feita com ampla participação e apoio não somente governamental, mas também de outras organizações não governamentais e privadas, e lideranças comunitárias. Tem papel muito importante na mobilização destes recursos as entidades científicas, dentre as quais se destacam a própria Sociedade Brasileira de Cardiologia (através de seu Comitê de Epidemiologia e Saúde Pública) e a Fundação Brasileira de Cardiologia(FUNCOR).Indicadores desfavoráveis e peculiaridades sócio-culturais de populações empobrecidas exigem para estes conjuntos sociais uma abordagem especial, assim como a população escolar, pelas facilidades na aplicação de atividades de educação para a saúde e chance de sucesso nas intervenções.
A SBC tem se esmerado no aperfeiçoamento de especialistas para o atendimento de pacientes na fase avançada das doenças, mas não satisfeita, passa a contemplar etapas novas oportunidades de controle. O GEECAB é o herdeiro da missão iniciada pelo comitê de epidemiologia, inicialmente alocado no FUNCOR.Tem consciência a SBC da utilidade de políticas mais globais, só alcançáveis com parcerias e participação da própria população, e que virão beneficiar a saúde cardiovascular através da melhoria da qualidade de vida.
Sistema de SaúdeFica desde logo saliente a importância de um sistema de saúde de acesso universal e que também contemple a promoção da saúde, facilitando a veiculação de informações e habilitando a população a utilizá-las plenamente. Para tanto se faz necessária uma política de saúde que defina, mobilize e integre os papéis dos atores de nível nacional, estadual, municipal, de conjuntos menores e do próprio indivíduo (por exemplo.: na elaboração de recomendações técnicas, compra de medicamentos, treinamento, marketing de saúde, etc...). As competências do público e do privado, as prioridades populacionais e para grupos de alto risco, precisam também ser definidas em cada nível dentro de um marco profissional, de longo termo, de maneira a permitir a visualização de objetivos que transcendam interesses particulares imediatos e o ciclo de uma única gestão governamental. Deve-se evitar a fragmentação entre duas culturas: a preventivista, centralmente planejada, privilegiando estratégias populacionais, voltada quase que exclusivamente para doenças infecto-contagiosas e a assistencial, anárquica, espaço tradicional para o atendimento das doenças crônicas.Foram saudados os programas dos Agentes Comunitários de Saúde, da Saúde da Família e de Saúde Escolar, como estratégias básicas para viabilizar a atenção primária à saúde e sua promoção. Também foi salientada a necessidade de enfatizar a descentralização das decisões sobre prioridades, com participação técnica e comunitária intersetorial, regionalizando as ações em todos os níveis, para facilitar a articulação das partes respeitando nossas importantes diferenças culturais.
Nestes dez anos, evidente progresso se fez, aproximando da realidade muito do que ficou idealizado neste documento, entretanto a interação da SBC com o sistema de saúde poderá acelerar o processo de desenvolvimento e garantir uma maior estabilidade, a longo prazo, para as experiências bem sucedidas.
Epidemiologia e Ações Baseadas em Evidências CientíficasAs decisões políticas populacionais, bem como as decisões terapêuticas de nível individual, precisam estar embasadas em informações epidemiológicas e nas evidências científicas já existentes, bem como em estudos de custo-efetividade, evitando o desperdício, a desinformação, a iatrogenia, e o primado do lucro sobre o bem comum. Fontes fidedignas de informação precisam ser estudadas, seus resultados precisam ser divulgados em linguagem adequada, e algumas pesquisas precisam ser replicadas para testar a aplicabilidade local de conclusões mais gerais ou procedentes de populações distintas.
As decisões baseadas em evidência científica se constituem numa das missões básicas do GEECAB, entretanto há ainda muito que pesquisar e definir ao ampliar o foco do indivíduo para a população, bem como na aplicabilidade dos resultados obtidos numa determinada população para outra.
Necessidades de Informação, Atualização e ComunicaçãoQuestionamentos sobre o manejo medicamentoso de fatores de risco em paciente de baixo risco, a abordagem de problemas originados nas desigualdades sociais, o papel da inflamação na aterogênese, e um crescente número de outras novidades científicas semelhantes, tornam cada vez mais importante a contínua atualização dos responsáveis por atividades preventivas.As facilidades dos meios de comunicação devem fomentar a articulação de lideranças, de grupos e entidades interessadas no bem comum. As discussões levantadas neste seminário devem ser continuadas através de rede de comunicação com base na INTERNET, inclusive com a implantação de uma página permanente sobre promoção da saúde e epidemiologia cardiovascular, inclusão de temas relacionados com epidemiologia e prevenção em reuniões científicas, cursos, seminários, revistas científicas e participação em grupos internacionais de discussão.
Também no terreno das facilidades para a comunicação, muito já pode ser festejado como real neste espaço de pouco mais de dez anos. Em seqüência ao seminário surgiu o grupo AMICOR e em seguida o ProCOR, embora com suas potencialidades ainda não totalmente aproveitadas.
Novo ParadigmaPor fim, mesmo tendo em vista os enormes avanços científicos e tecnológicos já alcançados ou em perspectiva na cardiologia, é cada vez mais necessária a construção de um paradigma de saúde e doença que viabilize o benefício de tais conquistas a toda a população. Para tanto se fazem necessárias uma reforma na educação médica e na educação dos demais profissionais da saúde, paralelamente a uma ampla discussão na qual participe a cultura popular, contribuindo para a evolução do modelo assistencial, do tradicional biomédico, para o bio-psico-social, com ênfase na saúde e não somente na doença.
É natural e inteligível a demora em se observar os resultados das mudanças de atitudes, conceitos, e práticas. A inércia do conservadorismo já estabelecido e as barreiras para mudanças impostas pelos interesses secundários ameaçados exigem a reunião de esforços, a busca de estratégias mais adequadas e a vigilância continuada que um grupo como o do GEECAB podem propiciar.Linhas potenciais de desenvolvimento
1 - Interação com áreas específicas do Ministério da Saúde e de outros
níveis de governo, bem como de entidades interessadas na promoção da
saúde;
2 - Interação com entidades externas ao país que possam trocar experiências
na área de Saúde Pública e Cardiovascular;
3 - Formação de um grupo de discussão permanente, utilizando recursos
eletrônicos para o desenvolvimento da perspectiva populacional da saúde/doença
cardiovascular;
4 - Desenvolvimento, junto com o MS, de áreas de vigilância epidemiológica,
destinadas a monitoração continuada de indicadores chave para melhor orientar a
política de saúde. Exemplo seria o registro sistemático de internações de casos
como de Insuficiência coronária aguda e doença cérebro-vascular, assim como já
se dispõe do de cirurgia cardíaca e cardiologia intervencionista.
5 - Fomento a projetos de atividade física, particularmente voltados para
população escolar e comunidades que utilizem áreas urbanas sub-aproveitadas.
6 - Re-edição do Seminário de dez dias (ou equivalente) de Epidemiologia
Cardiovascular e Prevenção.
7 - Discussão e estudo, por todos os meios disponíveis, para melhor
compreensão da determinação da saúde/doença cardiovascular sob uma perspectiva
populacional que não seja apenas baseada no somatório das experiências das
exposições individuais a fatores de risco comportamentais.
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