TROFÉU AMRIGS
JAMRIGS: 0 que motivou a sua escolha pela medicina como ramo profissional?
ACHUTTI: Bom, eu tinha dois tios médicos, e a gente sempre tem a figura de um
médico que nos cuida, pelo menos eu tinha uma boa imagem de médico. Além disto
meu pai era farmacêutico e no interior o farmacêutico é um pouco médico.
Mas na realidade, durante o curso científico, minha intenção não era ser
médico. Eu estava me preparando para ser engenheiro. Aí eu
encontrei minha mulher, a dra. Valderês, e acho que ela motivou minha opção, já
que queria fazer medicina.
JAMRIGS: Quantos anos o senhor está casado com a dra. Valderês?
ACHUTTI: Trinta e três anos. Casei durante o curso. Quando me formei minha esposa
estava grávida do nosso primeiro filho. Este filho é fotógrafo e minha segunda
filha é nossa colega, formada há dois anos.
JAMRIGS: No passado o sr. recebeu o Troféu AMRIGS por serviços prestados à comunidade.
O prêmio não é nada mais do que reconhecimento de um trabalho em favor da saúde
da população. Como um cardiologista caminhou para este campo tão heterogêneo,
que é o da saúde pública?
Seguindo a proposta de
apresentar o trabalho e o pensamento dos ganhadores do Troféu AMRIGS/89,
entrevistamos nesta edição o dr. Aloyzio Achutti, destacado com o prêmio na
categoria "Serviços Prestados à Comunidade.
Formado em 1958 pela Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o dr. Achutti' trabalha movido pela
paixão à saúde pública. Sua primeira preocupação foi com o tipo de assistência
que o Estado prestava, e o tipo de uso que este mesmo Estado fazia com o
trabalho médico. De atividade localizada, suas experiências foram se ampliando
por toda América Latina, com respaldo da Organização Mundial de Saúde - OMS.
Hoje sua preocupação é com o estudante de medicina.
Uma prova de que o antigo desejo de ser engenheiro
não o abandonou, sua teoria é de que se torna necessário a criação de pontes
entre as várias facetas e peculiaridades da medicina.
ACHUTTI: Eu tenho impressão que o que me marcou, que me motiva e me leva — e que pode ter
sido motivação para ser distinguido com o prêmio não é
provavelmente a atividade clínica.
Num determinado momento essa atividade clínica não me satisfez mais. Eu
comecei a ter algumas inquietações, sobre o porquê das doenças, porquê da
saúde. Cada caso que a gente encontra é como se tivéssemos uma história muito
curta, tanto no tempo quanto no espaço, de uma pessoa. Ela começa a sentir dor
no peito, mas na realidade isto é um ponto dentro de um processo realmente mais
longo no tempo. E se nós ficarmos, como médicos, só restritos a essa parte da
história, é muito pouco. Pode satisfazer por algum tempo, mas logo a gente
começa a perguntar se por trás disto aí, tem alguma coisa mais errada.
JAMRIGS: Quando esta inquietação não acontece, o que falhou?
ACHUTTI: Formalmente o curso médico não está tão preocupado em contar o que está
atrás da história. O médico está muito voltado para a coisa imediata, tapar o
buraco. Na realidade isto precisa ser mudado e tem muita gente no mundo fazendo
esforço para a mudança. E não é só perceber o que está atrás da história, mas
os “n” elementos encadeados. Eu pego o sujeito com angina, por exemplo. Ele
fuma. Fuma porque estava buscando saída para uma depressão crônica; porque veio
de uma civilização urbana industrial, que o reprime sem perspectiva futura,
com toda uma situação econômica difícil. Tudo tem uma fenomenologia social.
Então é mais ou menos por aí. É tentando ver para além do fenômeno
aparentemente isolado que surgem as minhas inquietações. O curso médico me preparou para este
fenômeno de curta duração, mas isto não chega.
JAMRIGS: O conceito de saúde é ainda muito distorcido, muito centrado na figura
do médico no consultório, curando um mal imediato, não é mesmo?
ACHUTTI: É uma coisinha curtinha. Resolve um problema imediato e nem deve se
interessar pelo resto, senão ele vai começar a fazer muitas perguntas, vai
começar a incomodar.
Mas posso dizer que dois fatores aguçaram mais minhas inquietações.
Durante uma época eu trabalhei com cardiopatias congênitas, que se vamos olhar
parece mais alienante ainda, é uma superespecialização. Era o ano de 1970 e eu
trabalhava na Secretaria de Saúde do Estado, no Instituto de Cardiologia.
A partir daí surgiu a oportunidade e trabalhar dentro da área de cardiologia,
em uma base populacional envolvendo saúde pública. Eu queria sair do
Serviço Público Estadual, porque ia assumir como professor na PUCRS. Quem
liberava era o Secretário da Saúde Jair Soares pessoalmente, e eu fui dizer à
ele que queria licença para tratar de interesses. Ele argumentou com os meus 17
anos de serviço público, e eu argumentei que estava apenas fazendo assistência
sem perspectiva de saúde pública, o que continuaria fazendo no meu novo serviço
universitário. Ele então me colocou contra a
parede, sugerindo que eu propusesse como eu achava que deveria ser. Comecei
então a pensar em algo dentro da minha área. Na Europa estavam desenvolvendo um
programa de prevenção da Febre Reumática, que é mais comum em países pobres e
em desenvolvimento. Era uma proposta da OMS para países como Sudão, Egito,
Turquia e Grécia, com padrões iguais ou piores que os nossos, e se eles podiam
fazer, porque não aqui? Trabalhei nesta linha, até para sensibilizar o pessoal
do Planejamento da Secretaria da Saúde - na época o Arco Verde, Sclyar, Tigre,
Ossanai, Fischmann, e outros - uma turma, que estava fazendo a saúde pública
desabrochar. Havia um escritório da Organização Pan-americana de Saúde e Porto
Alegre, e eu pedi autorização para utilizar um protocolo da OMS, após expor meu
projeto. Autorizaram e comecei a trabalhar. Em 74 veio a Porto Alegre o diretor
do setor de Doenças Cardiovasculares da OMS, para falar
comigo, o que foi uma surpresa, pois fiquei sabendo que nosso
programa era o único no mundo com base governamental. Os outros eram todos
baseados em serviços privados. De uma hora para outra a coisa ficou importante
e evoluiu a ponto de sermos consultados pelo Ministério da Saúde se poderíamos
abrigar reuniões dos países latino-americanos que queriam fazer um
projeto para Prevenção da Febre Reumática, já que éramos os únicos que tinham a
coisa regulamentada e andando. A reunião aconteceu em 1975 e eu coordenei, com
a participação de oito países latino-americanos
JAMRIGS: E agora na UFRGS mais um desafio...
ACHUTTI: Isso está me dando muita satisfação. Na realidade
a turma que recém ingressa, em todas as universidades, tem uma riqueza que os torna
capazes de enxergar além do horizonte imediato. O currículo infelizmente os
desvia desse caminho, porque a formação médica é a deformação da realidade
humana. Esse médico durão, tecnicista é uma deformação. Os meus alunos estão
agora trabalhando com velhinhos nos asilos, e no mês passado, de
70 alunos, tranquilamente 60 tiveram uma resposta extraordinária em termos de
escrever, descrever situações, de fazer coisas que eles perdem durante o curso.
A disciplina que eu tenho na UFRGS era a antiga “Acompanhamentos de
Família” e que rebatizamos de “Promoção e Proteção à Saúde”, e acho que é uma
coisa muito boa, porque a gente tem que simplificar para estudar, mas depois
temos que “complicar” tudo de novo para
poder ver o fato em todas as suas dimensões. Aqui na própria AM
RIGS, onde já trabalhei bastante, o espírito é o de especialidades
querendo mostrar a coisa dentro de uma superespecialização e de um fenômeno
isolado, não fazendo as pontes buscando uma explicação no conjunto.
JAMRIGS - Estabelecer as pontes é a sua proposta...
ACHUTTI: O médico pode ter a atitude, uma presença, como operário. Não como se
desejaria que o operário fosse, mas o da estória do apertador de parafusos do
Chaplin. Ele faz e não se importa com o todo, e até há interesse que ele não
tenha noção de conjunto, porque aí não poderá mudar as coisas. Só tem que
fazer, fazer, indefinidamente fazer o mesmo. Não questiona, não muda nada. Nós
médicos somos treinados para fazer coisas que não mudem nada. Eu tenho
procurado trabalhar minhas inquietações, e acho que estabelecer pontes é de
fundamental importância.