06 de janeiro de 2010 | N° 16207
ARTIGOS
Judiciário, SUS e desigualdades, por Maria inês Azambuja *
Há um fosso enorme entre ricos e pobres no Brasil. Tão grande, que impede que mesmo agentes de instituições públicas, remunerados pelo Estado, conheçam a realidade dos menos privilegiados e portanto as reais circunstâncias do país. Sem conhecer, é impossível mudar.
Em artigo da ZH de ontem, esta frase foi escrita por um juiz: “Virou chiquérrimo estar deprimido. Coisa de gente endinheirada... Ou vocês conhecem um auxiliar de pedreiro... que padeça desse mal?”.
Qualquer médico que opera na ponta do SUS conhece, muitos! E sabe que a depressão e outras patologias mentais são, ao lado das doenças osteomusculares, a primeira causa de solicitação de benefício previdenciário por incapacidade para o trabalho no Brasil (Boff, Leite. Azambuja 2001).
Mas para fazer justiça ao juiz, também já ouvi de médico de Centro Especializado de Referência no SUS, com pouco contato com pacientes mais pobres, que “infarto do miocárdio não acontece em trabalhadores porque eles não se estressam”. A verdade é o oposto disto. Em Porto Alegre, o risco de morrer antes dos 65 anos por infarto do miocárdio é 2,3 vezes maior em moradores de bairros no quartil inferior da distribuição socioeconômica comparados a moradores de bairros no quartil superior (Basanesi, Azambuja, Achutti 2008).
Se o SUS fosse a única porta de acesso para a assistência médica, como é o Judiciário para o sistema legal, possivelmente teríamos médicos – que funcionariam como controladores no acesso aos diferentes níveis e procedimentos no sistema – tão bem pagos como os juízes hoje, hospitais de Primeiro Mundo, e médicos assistentes contratados a peso de ouro por quem pode pagar (a exemplo dos advogados da parte), mas filas de 15 anos e contato mínimo entre os médicos do sistema e os pobres.
Se o Judiciário operasse como o SUS, complementarmente a um sistema de Justiça privada, os juízes do sistema público não teriam poder algum, o Judiciário seria subfinanciado, seus prédios se assemelhariam às unidades do SUS, e os pobres seriam melhor conhecidos, mas continuariam nas filas, pela falta de recursos orçamentários.
Este exercício mental de transposição nas formas de operacionalização do sistema Judiciário e do SUS, duas instituições que prestam serviços diferentes mas em tese com a mesma abrangência – justiça para todos e saúde para todos –, pode tornar mais claras as distorções de cada uma, e ajudar-nos a repensá-las.
Nossas instituições públicas precisam mudar para se tornarem elas próprias facilitadoras da mudança social. Como estão, elas se conformam e reforçam a desigualdade ao invés de contribuírem para reduzi-la.
* Médica, professora da Faculdade de Medicina da UFRGS, membro do Grupo de Recursos Científicos em Análise e Pesquisa em Equidade, da Organização Mundial da Saúde
Em artigo da ZH de ontem, esta frase foi escrita por um juiz: “Virou chiquérrimo estar deprimido. Coisa de gente endinheirada... Ou vocês conhecem um auxiliar de pedreiro... que padeça desse mal?”.
Qualquer médico que opera na ponta do SUS conhece, muitos! E sabe que a depressão e outras patologias mentais são, ao lado das doenças osteomusculares, a primeira causa de solicitação de benefício previdenciário por incapacidade para o trabalho no Brasil (Boff, Leite. Azambuja 2001).
Mas para fazer justiça ao juiz, também já ouvi de médico de Centro Especializado de Referência no SUS, com pouco contato com pacientes mais pobres, que “infarto do miocárdio não acontece em trabalhadores porque eles não se estressam”. A verdade é o oposto disto. Em Porto Alegre, o risco de morrer antes dos 65 anos por infarto do miocárdio é 2,3 vezes maior em moradores de bairros no quartil inferior da distribuição socioeconômica comparados a moradores de bairros no quartil superior (Basanesi, Azambuja, Achutti 2008).
Se o SUS fosse a única porta de acesso para a assistência médica, como é o Judiciário para o sistema legal, possivelmente teríamos médicos – que funcionariam como controladores no acesso aos diferentes níveis e procedimentos no sistema – tão bem pagos como os juízes hoje, hospitais de Primeiro Mundo, e médicos assistentes contratados a peso de ouro por quem pode pagar (a exemplo dos advogados da parte), mas filas de 15 anos e contato mínimo entre os médicos do sistema e os pobres.
Se o Judiciário operasse como o SUS, complementarmente a um sistema de Justiça privada, os juízes do sistema público não teriam poder algum, o Judiciário seria subfinanciado, seus prédios se assemelhariam às unidades do SUS, e os pobres seriam melhor conhecidos, mas continuariam nas filas, pela falta de recursos orçamentários.
Este exercício mental de transposição nas formas de operacionalização do sistema Judiciário e do SUS, duas instituições que prestam serviços diferentes mas em tese com a mesma abrangência – justiça para todos e saúde para todos –, pode tornar mais claras as distorções de cada uma, e ajudar-nos a repensá-las.
Nossas instituições públicas precisam mudar para se tornarem elas próprias facilitadoras da mudança social. Como estão, elas se conformam e reforçam a desigualdade ao invés de contribuírem para reduzi-la.
* Médica, professora da Faculdade de Medicina da UFRGS, membro do Grupo de Recursos Científicos em Análise e Pesquisa em Equidade, da Organização Mundial da Saúde
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